Lutos e Lutas na Adolescência – The Summer Hikaru Died

Ilustração que anuncia a confirmação da segunda temporada. Hikaru e Yoshiki Caminham em uma bela praia.
Não é anime de verão se não tiver episódio de praia.

Como o nerd que sou, animês e mangás fizeram parte da minha formação enquanto pessoa desde muito jovem e, embora eu prefira a leitura à animação, a comoção nas redes sociais nos últimos meses me levou a dar uma chance para O Verão em Que Hikaru Morreu. A história tem sido aclamada tanto no Brasil quanto no exterior e frequentemente é citada como a melhor animação da temporada e o melhor animê de terror em muito tempo. Acompanhar a jornada dos melhores amigos Hikaru e Yoshiki me fez pensar e sentir muitas coisas e a principal reflexão é o que abordarei nesse texto: O que fazer quando algo morreu, mas ainda estamos profundamente apegados ao seu cadáver?

 

Aqui cabe um aviso: o texto terá pequenos spoilers da animação e um grande spoiler do mangá (que, no capítulo atual, ultrapassa o que foi adaptado para a tela). Não tem como explicar meus pontos sem isso, então se você prefere assistir sem saber de nada, vá ver os episódios e volte aqui assim que possível. Se você não viu ou não se importa com spoilers, vou partir para a explicação.

 

The Summer Hikaru Died, ou O Verão em que Hikaru Morreu, é uma adaptação do mangá de mesmo nome. Lançado em 2025 pela Netflix, e já com uma segunda temporada confirmada, o animê conta com 12 episódios que narram, de maneira muito fiel, o primeiro arco dos quadrinhos. A premissa é a seguinte: Yoshiki e Hikaru são melhores amigos desde quando eram crianças. Em uma noite, Hikaru desaparece na montanha do vilarejo e fica sumido por uma semana. Passados 6 meses desde o retorno, Yoshiki confronta o amigo, dizendo que sabe que ele não é o verdadeiro Hikaru.

 

Como o próprio título entrega: Hikaru morreu. Algum ser obscuro tomou seu corpo e decidiu viver a vida do garoto em seu lugar. Por meio de um misto de sensibilidade espiritual e inteligência emocional, Yoshiki percebe que aquele não é seu melhor amigo, é a usurpadora. Porém, a dor de imaginar nunca mais poder ver o amigo de infância faz com que Yoshiki aceite continuar ao lado do “Hikaru”. Além disso, “Hikaru” implora para que o amigo não o revele, porque ele o ama e não quer precisar matá-lo.

 

Conforme a trama progride, aprendemos que “Hikaru” tem as mesmas memórias do original e até mesmo mantém algo dos sentimentos dele, o problema é que, por mais que até disfarce bem, “Hikaru” não é humano. Sua real natureza envolve loucura, violência e morte. Enquanto isso, Yoshiki vive um luto doloroso e solitário pelo amigo, o qual apenas ele sabe que morreu, ao mesmo tempo que tenta assimilar essa nova versão e entender o que sua presença significa.

 

Duas ideias principais ficaram me rondando por causa dessa história, a primeira delas é sobre o luto simbólico quando uma amizade termina e o que resta dela parece muito com aquilo que amávamos, mas agora tem um potencial imenso para nos ferir. A segunda ideia é sobre os sentimentos, descobertas e possibilidades interrompidas por um luto e o que fazemos com o amor que não tem para onde ir.


Yoshiki está sentado e Hikaru está próximo a ele em um abraço expressivo
A cena que viralizou e me fez querer ver o animê.

Para aprofundar a primeira reflexão, irei pincelar um pouquinho de termos técnicos, começando pelo conceito de Luto Simbólico. Esse termo é usado na psicanálise para designar o processo de sofrimento natural diante de uma perda significativa que não envolve a morte de alguém querido, um término de relacionamento, um projeto de vida que fracassou, um bem importante destruído ou perdido... Tudo a que atribuímos valor pode nos levar a um processo de luto quando se vai.

 

No animê Hikaru realmente morreu, o luto de Yoshiki não é simbólico, embora haja uma versão de seu melhor amigo ainda presente. No entanto, o subtexto me levou a pensar nos lutos vividos quando atravessamos a fase da vida na qual os personagens se encontram: a adolescência. É claro, se você tem 16 anos de idade em 2025, eu duvido (na verdade, espero) que sua experiência seja diferente, mas vou falar sobre o que vivi e a minha experiência lá em 2000 e Single Ladies.

 

O Dr. Brendan K. Hartman é um sociólogo estadunidense que estuda o desenvolvimento emocional e social de jovens. Em seu Instagram (@re.masculine) há um vídeo (em inglês) no qual ele fala sobre duas crises pelas quais garotos passam em seu crescimento, uma aos 5 anos de idade e outra aos 15. Ambas fazem parte de um processo em que determinados valores associados à masculinidade são forçados sobre eles e coincidem com o período de introdução ao ambiente escolar ou uma mudança na dinâmica deste. Ainda segundo os estudos de Brendan, aos 5 anos de idade, garotos se tornam menos expressivos verbalmente do que garotas e passam a reconhecer que medo e tristeza não são bem recebidos ao serem expressos.

 

Aos 15 anos, no auge das incertezas e inseguranças, a escola se mostra um ambiente repleto de oportunidades para humilhação. Ao mesmo tempo que temos a puberdade e as primeiras relações românticas e íntimas começando a acontecer, o peso das opiniões externas na nossa identidade passa a ser muito maior. A pressão para ser o que se espera de um homem, brutaliza jovens rapazes que veem negada a possibilidade de expressar sentimentos, se mostrar vulneráveis e, até mesmo, se descobrir emocional, profissional e sexualmente.

 

Em sua pesquisa, Dr. Brendan atesta que a maioria dos jovens entre 17 e 19 anos diz que o momento em que se sentiam menos autênticos e obrigados a vestir uma máscara foi na fase entre 14 e 15 anos, logo na entrada do Ensino Médio. Uma pedaço dos garotos morre ao entrar no colegial, porque as opções são matar a si próprio e esconder o corpo, ou se tornar um alvo para aqueles que já fizeram isso e não suportam a ideia de encarar alguém que não tenha se conformado, provando que existem outros caminhos possíveis.

 

“Hikaru” está fingindo ser alguém que não é, na esperança de poder viver uma vida normal, mas Yoshiki é quem veste a máscara mais parecida com a que nos é forçada na realidade. Ele finge não estar dilacerado emocionalmente pela morte do amigo, esconde sua tristeza e solidão dos outros, além de ter perdido a pessoa com quem poderia se abrir sobre suas dificuldades mundanas, como o relacionamento complicado com o pai. No lugar do amigo de infância, um monstro com o mesmo rosto que já disse que o mataria se fosse o caso, ainda que prefira não o fazer.

 

Quantas vezes, ao crescermos, não sentimos algo parecido? Aquela amizade próxima começa a deixar de ser um porto seguro e surge a sensação de que mostrar seus medos para ela pode ser o seu fim. Talvez seu amigo fingisse bem, talvez ele realmente fosse o macho perfeito, com interesses e gostos de macho, sentimentos de macho (raiva e tesão, apenas), e sem espaço pra dúvidas. Enquanto jovens rapazes, frequentemente nos vemos envoltos em silêncios calculados e mentiras para encobrir as centenas de dúvidas em nós, porque havia uma possibilidade muito real de que, ao expor qualquer uma delas, isso levasse a sermos jogados para fora do armário como algo monstruoso, ou a sermos engolidos pelo monstro o qual nosso amigo se tornou. Afinal, nos mastigar e cuspir fora era a única coisa que asseguraria que a identidade dele permanecesse segura.

 

Dói perceber que seu amigo não está mais ali. Também dói perceber que não somos quem esperavam que fôssemos. Recentemente li uma frase que dizia: “Um término claro nos permite sofrer e prosseguir, mas algo sem definição nos cola em um labirinto sem saída.” A adolescência engloba muitos lutos e os mais difíceis são os que não entendemos como tal.

Para a segunda reflexão, vem o alerta de spoiler para o capítulo mais recente do mangá.

Ao longo dos episódios, a série dá dicas ambíguas sobre a natureza da relação entre Hikaru e Yoshiki. E eu digo ambíguas por dois motivos: um, eu estou acostumado com amigos sendo afetuosos sem que isso tenha um significado oculto; e dois, eu já consumi mangás, animês e séries o bastante para desconfiar de qualquer coisa que não seja dita de maneira explícita. Um personagem pode parecer totalmente apaixonado e do nada alguém diz que na verdade ele era atraído pelo poder da lua que emanava do outro. Sério.


uma arte do mangá onde Hikaru e Yoshiki tomam sorvete juntos. Hikaru está com a cabeça entre as pernas do amigo e ambos vestem seu uniforme escolar.
... e só é verão de verdade se tiver sorvete e broderagem.

 

Temos momentos nos quais Yoshiki fica vermelho ao ver o amigo sem camisa e cenas onde ele passa algum tempo reparando no corpo de “Hikaru”, que podem ser interpretadas como desejo, mas também como curiosidade ou estranhamento por saber que, apesar do que está diante dele, aquele não é seu amigo de verdade. Uma cena viralizou, onde Yoshiki coloca a mão dentro de “Hikaru” e sente como o monstro é por dentro, o momento carrega nuances sexuais, mas a ambiguidade permanece. Mais de uma vez vemos “Hikaru” dizer que ama Yoshiki, embora não fique clara a conotação da palavra, porém o monstro diz que provavelmente estes sentimentos já estavam naquele corpo antes de ele tomar conta.

 

Talvez esse seja o aspecto mais doloroso da história, uma parte real do luto: não importa muito se Yoshiki estava apaixonado por Hikaru, ou vice-versa; não importa se era um caso em que um tinha sentimentos fraternais e o outro sentimentos românticos a serem descobertos, ou se ambos se gostavam e só não tinham tido coragem de explorar isso. Nada importa, porque Hikaru morreu. Qualquer conversa que eles pudessem ter, qualquer possibilidade que fossem explorar, nunca vai acontecer. No mangá, temos uma confissão, Yoshiki revela para uma amiga que ele gostava de Hikaru de maneira romântica e que já tinha estes sentimentos desde muito tempo, mas nunca tivera coragem de assumi-los.

 

Agora é tarde, “Hikaru”, não é Hikaru. Yoshiki demonstra ter plena consciência de que não é pelo monstro que ele nutre tais sentimentos, era pelo seu amigo de infância. A realidade nos atinge repetidas vezes: ele jamais saberá o que poderia ter sido ou a natureza dos sentimentos do verdadeiro Hikaru; essas respostas morreram com ele. Amor interrompido, sem ter para onde ir. Mas não é seu amor pelo falecido amigo que faz o protagonista se agarrar a “Hikaru”. Yoshiki se acha monstruoso por sentir o que sente por outro garoto, nojento. E é isso que o faz acolher “Hikaru”, ele se vê como um monstro também. Para Yoshiki, ser um garoto que gosta de garotos é tão vil, errado e perigoso quanto ser uma entidade sobrenatural com desejo de consumir vidas humanas.

 

Tratar sobre luto, a complexidade das relações entre garotos e homofobia internalizada tudo ao mesmo tempo, não era algo que eu esperava de um mangá/animê, mas foi uma ótima surpresa. Todos esses assuntos são do meu mais profundo interesse e a perspectiva da história é sensível. O terror é, acima de tudo, simbólico para a vivência de um garoto LGBT, num vilarejo do interior.

 

Eu até queria alguma frase de efeito pra terminar o texto numa nota mais positiva, mas o que me faz sentir bem aqui é que eu descobri um mangá primoroso e que aborda sentimentos os quais não vejo serem explorados o bastante. O Verão em que Hikaru Morreu é triste, é lindo, é aterrorizante e é real.

 

E só pra não deixar passar em branco o momento histórico no qual estamos vivendo (o lançamento de mais um álbum da Taylor Swift), deixo um trecho de Ruin The Friendship, uma música sobre amores, amizades e arrependimentos, com a seguinte mensagem: se arruinar uma amizade for o preço para se tornar sua versão mais autêntica e viver a verdade sobre aquilo que você sente, sempre escolha arruinar a amizade.

 

Não era conveniente,

eu sussurrei para o túmulo:

“mas deveria ter te beijado mesmo assim.”

— T.S.

 

Comentários

  1. Mais um exemplo de como as suas colocações sobre esse tipo de assunto são cheias de reflexões pertinentes e envolventes. Quando você fala que o terror está entrelaçado com a vivência de pessoas LGBT+ em cidades do interior, minha cabeça explode em vários exemplos, pessoais ou não.

    Que bom que estamos começando a falar mais sobre nossas dores e nossos sentimentos negativos. Ainda bem que obras como essa e textos como os seus a respeito dessa arte ajudam a trazer à tona estes diálogos. Obrigada!!

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  2. Ver você falando sobre o mangá/anime semana passada foi uma experiência awesome de entender todas as nuances da sua sensibilidade com o mundo.
    Agora fiquei com vontade de ler o mangá, creio que não será queerbait e valeu por trazer essas informações pra gente saber mais.

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