Eu disse que um de meus desejos era voltar a publicar mais
textos de opinião por aqui, como eu fazia no início. Pois bem, aqui estamos nós
and here we go anow. 20 de Novembro, o dia da consciência negra, se
aproxima e não haveria momento mais propício para trazer a pauta desse texto:
descobrir-se negro. Então, fique confortável, respire fundo e aproveite a
leitura. Meus agradecimentos à Jéssica, Dalila e Leo, amigos que por meio de
diálogos e vivências me ajudaram a enriquecer esse texto.
O Dia em Que o Mundo Descobriu que a Beyoncé é Negra
O título
desse post se deve a um esquete de humor lançada em 2016 no Saturday Night Live
da NBC. Nela o mundo entra em colapso quando, após vários anos, uma verdade é
revelada: Beyoncé é negra. A realidade é que a piada foi muito inteligente e
satirizou algo que recentemente foi tópico de conversa entre um amigo e eu que
é a percepção (nossa e dos outros), sobre o que significa a negritude. Vou pôr
o vídeo aqui para vocês rirem e entenderem melhor.
Agora,
falando sobre a nossa Ms. Carter. Beyoncé alcançou o sucesso no fim da década
de 90 com o grupo Destiny’s Child. Em 2003 lançou seu primeiro álbum solo e de
lá até aqui só tem sido cada vez mais bem-sucedida (vou fingir que o 4 não foi
a menor vendagem). No entanto, embora a sonoridade dela fosse nitidamente
negra, com pegadas de Soul, Blues, R&B e Hip-Hop ainda era música pop e as
letras se debruçavam sobre temas como relacionamentos, dança, festas e as vezes
uma temática gospel (Bey é super cristã). O ponto de virada veio em 2016, com o
lançamento do álbum Lemonade.
Divisor de
águas na carreira de Beyoncé, Lemonade é um álbum visual e foi a primeira vez
que a Queen B colocou em seu trabalho mensagens explicitamente políticas, pautando
racismo, a solidão da mulher negra, até a violência policial contra negros, (gente,
tem um menininho dançando na frente de policiais diante da frase “Parem de
atirar em nós” no videoclipe de Formation, eu choro até hoje). O resultado foi
mais ou menos esse aí do vídeo, a mídia se revoltou, policiais se revoltaram,
pessoas queriam boicotar Beyoncé (e a debochada fez uma camiseta “Boicote
Beyoncé”, pôs pra vender na porta dos shows e ganhou milhões hahahaha), tudo
porque tiveram uma luz e lembraram que ela é negra. Mas mais do que ser negra,
ela se posicionou como tal e se opôs àqueles que tornavam ser negro algo mais
difícil, e foi isso que causou tanto incômodo. O que teve de gente dizendo para
ela se calar sobre política e ficar só fazendo música e dançando não tá
escrito. Felizmente ela segue fazendo ambos. Não vou entrar na crítica sobre o
feminismo liberal e o (falso) empoderamento por meio do consumo que a figura da
Bey também traz, porque isso rende outro post, vamos focar nas questões
sócio-raciais hoje.
O Brasil e os
Estados-Unidos têm histórias e cenários MUITO diferentes no que tange
preconceito racial, dá pra fazer um livro só detalhando o quanto, mas essa nem
de longe é minha pretensão. O fato é que no Brasil, ser visto como negro tem
muito a ver com tom de pele. Se o seu for um pouco mais claro inventam mil nomenclaturas
para te classificar que não seja preto, uma das facetas do nosso racismo
estrutural que ainda acha que chamar alguém de negro pode soar ofensivo. Quantas
vezes já não ouvi me chamarem de “moreno” ou dizerem, “mas sua pele nem é tão
escura”, “você não é tão negro assim”, como se isso fosse elogioso? Socialmente
o branco e o que é atribuído a ele é a norma, o padrão a ser buscado. Qualquer
coisa fora desse padrão é, ou indesejável; portanto embranquecido (Não só no
tom de pele como explicarei adiante), na busca de tornar-se mais aceitável,
como Whitney Houston, Rihanna e Beyoncé foram, como astros de K-Pop são, e como
pessoas no dia a dia se submetem a ser; ou é taxado como “exótico” de uma
maneira quase fetichizadora. Eu disse quase? Risca e troca por TOTALMENTE. E
aqui não falo de estereótipos raciais colocados apenas sobre os negros, quem
nunca ouviu sobre como o amigo descendente de japoneses é “quietinho, educado e
inteligente” porque “todos eles são assim”?
Foi numa
conversa de madrugada com minha amiga Dalila que chegamos no termo “negro
passável”, que é o que a Beyoncé se mostrava para muitas pessoas, e isso vai
além de cor da pele. O Negro passável é aquele que abarca características que o
destacam menos como negro e o aproximam da norma/padrão e isso não se limita a
aparência, mas também a comportamento. Antes de continuar é importante que eu
frise: existem tantas maneiras de se ser negro quanto existem de ser humano,
não é uma lista com quadradinhos para se preencher. No entanto existem características
social, cultural e geneticamente associadas a negros. Algumas são estereótipos
nocivos criados e perpetuados pelo preconceito e outras simplesmente parte de
nossa herança étnico-cultural. Por que um país de maioria auto declarada negra
ou parda, em 2019 ainda busca se encaixar em padrões europeus é uma pergunta
que eu me faço todo dia (e detesto as respostas).
Imagens ao vivo de pessoas testemunhando uma fada morrer cada vez que me chamam de moreno. Assistam Dear White People
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Características
que tornariam um negro “passável” podem incluir cor de pele, cabelos alisados e
nariz fino, mas também (e na minha opinião, principalmente) incluem maneira de
falar, de se vestir, local de moradia, círculo social, e tipo de entretenimento
consumido Pera, vou dar exemplos porque sou uma fada didática. Estatisticamente
a população negra ainda configura a maioria periférica e a periferia tem sua
própria cultura e identidade linguística e visual, destacando o indivíduo entre
aqueles que não vem do mesmo lugar que ele. No que tange círculo social me uso
de exemplo: eu tenho muitos amigos brancos. Hoje é nítido para mim que a razão
disso passa pelos locais que estudei e trabalhei: escolas que, embora fossem
públicas, eram no centro da cidade, universidade pública estadual num curso de
elite, emprego em banco... e como escritor, não é raro eu ser o único negro no
grupo de alguma publicação também.
O entretenimento talvez seja a parte um pouco
menos definidora no Brasil, mas nos EUA isso é bem sério, tem uma divisão forte
por lá. Em um episódio de Queer Eye uma moça negra conta que era chamada de
Óreo (como se fosse negra por fora e branca por dentro) por gostar de Paramore.
Nas páginas dos artistas no facebook fica nítido qual é o demográfico dos fãs
de cada um, fui na da Avril quando ela lançou Dumb Blond com a Nicki Minaj e só
tinha gente branca (quase todos reclamando, mas a música parece que foi
ressuscitada de 2008 mesmo, não dá pra defender). Mas me diz aí, o tema desse
ano no ENEM foi democratização do cinema, né? Fazendo um recorte social, há
menos acesso para cinema, teatro, museus e arte num geral para a periferia
(imagina além do ingresso, ter de pagar quatro ônibus pra poder ir e voltar de
uma peça de teatro?), isso, aquela mesma periferia que é composta
majoritariamente por negros.
Deter essas características
de “passabilidade” é ter coisas que fazem as pessoas “esquecerem” que você é
negro. Chamamos de “passável” porque um negro assim não causa incômodo, igual a
Beyoncé pré 2016. Se ele não se vê como negro, se não pensa sobre si assim,
então ele não vai se opor ao racismo, porque nem mesmo vai reconhecer que algo
é racista. Ele não vai se importar com a piadinha de mal gosto, porque “não tem
nada a ver, é só brincadeira”. Ele não vai perceber situações e, por não as
perceber, além de permitir que façam com ele o que achem apropriado, o negro
passável também vai servir de justificativa quando pessoas quiserem replicar
seu comportamento problemático com outros negros, afinal: “Nossa, mas eu tenho
um amigo negro e ele não liga quando eu faço essa piada, digo tal coisa ou ajo
de tal maneira”. O negro que não é ciente de sua negritude se torna vítima de
um abuso social disfarçado de cortesia e um cúmplice inconsciente do opressor.
E não são só
as pessoas que fazem vistas grossas – quando conveniente – sobre a negritude de
um negro passável. Quão mais privilegiado se é, menos é necessário se lembrar
de sua condição, então as vezes nós mesmos a esquecemos, ou sequer a descobrirmos.
Tenho amigos próximos que passaram pelo processo de se descobrirem negros.
Também já vi algumas pessoas mais distantes (as quais me interesso pelo
trabalho, na internet) passarem pelo mesmo: aquele momento na vida que você
nota como o mundo te enxerga e isso muda como você o olha de volta. Quando você
esquecer que é negro, pobre, LGBT ou qualquer coisa do tipo, alguém que não
seja vai te lembrar. As pessoas dizem “eu não te vejo como negro” como se fosse
um elogio, mas são rápidas em se justificar por algo com “não é porque você é
negro”. E daí entra o ponto: o que, em nome de Beyoncé, é ser negro?
Para mim, ser
negro é identidade e essa identidade se compõe por muitas coisas: herança
familiar e cultural, reconhecimento histórico, identificação com figuras
políticas e artísticas, opressão, racismo, preconceito, consciência de classe,
CABELO (com letras maiúsculas, porque meu cabelo é muito parte da minha
identidade e é herança cultural familiar, já que aprendi com minha tia que é trançadeira),
ancestralidade e talvez ainda muito mais coisas. Porém, ao contrário de outras
etnias, a identidade negra no Brasil foi apagada e substituída por aquilo que
conseguimos criar, assimilar de outras e resgatar minimamente.
Meus amigos
nipodescendentes tem parentes que falam a língua de sua terra natal, muitos
seguem o budismo como religião e todos eles têm tradições, festivais e grupos
que resguardam a historicidade e identidade deles. Meus amigos descendentes de
italianos sabem até quem tava no barco junto com o bisavô quando ele veio para
cá. Eu sei o nome dos meus bisavôs maternos e é o mais distante que chega meu
conhecimento acerca de meus antepassados. Idioma, religião, tradições, quase
nada disto é composto por mais do que três gerações. Como negro eu tinha de
resgatar uma identidade perdida (na verdade massacrada e roubada), na tentativa
de construir a minha como alguém consciente e redescobrir o pertencimento que vem
com a negritude em suas alegrias e dores. Sim, porque é muito doloroso reconhecer
a discriminação, o preconceito, a violência e tortura sofridos que fazem parte
de nossa herança. Ser negro e ser ciente do significado que isso carrega no
mundo, é um ato político, é resistência, é difícil e é todos os dias. Não
estamos trilhando um caminho, estamos construindo um.
Antes de
encerrar esse post eu queria falar sobre o que me inspirou a fazê-lo. Um amigo
foi fazer uma palestra em um evento da UNESP da minha cidade. Ao terminar sua
fala, uma garota se aproximou dele, fez algumas perguntas e pediu por uma foto.
Ela disse que ele havia sido o único palestrante negro em todo o evento (que
tinha durado por uma semana inteira). O lance é que esse momento foi o que deu
ao meu amigo o estalo de que ele ser um homem negro, ocupando um espaço na
universidade tem algum significado. A formação dele, voltada para tecnologias,
o colocou em um espaço majoritariamente branco, mas por não pensar questões de
raça até então, ele jamais havia se dado conta do impacto disso para os outros
e para si próprio. Depois dessa situação ele veio conversar comigo e tivemos um
diálogo muito gostoso e construtivo sobre identidade e negritude, que me fez
organizar e pôr em palavras muitas coisas as quais eu sabia, mas jamais havia verbalizado.
Me despeço
com o desejo que jamais nenhuma identidade seja invisibilizada. Sigo aqui:
preto, acadêmico, escritor, bissexual, periférico e brilhando muito que é pra
todo mundo me ver, e talvez ajudar outros a se enxergarem.
- Miguel
Sinto muito orgulho de ser seu amigo. Você é brilhante. Sua escrita é cativante. É maravilhoso ler suas ideias e poder crescer a cada palavra. Obrigado por ser cada dia mais perfeito.
ResponderExcluirQue riqueza todo essa escrita, sigo aqui aprendendo! ❤️
ResponderExcluirMuito obrigada por compartilhar seu conhecimento e suas vivências tão lúcidas e cada dia mais combativa!
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