Uma Criminosa, uma Vadia, uma Idiota e uma Mentirosa

Eu prometo que nunca mais vou prometer escrever mais por aqui. Sério. Parece que toda vez que digo isso eu acabo caindo num limbo e desaparecendo desse blog. Nem sei mais se alguém vem aqui ler, mas se você veio: muito obrigado. <3 Já aviso que a escrita não parou e que tem conto meu em antologia, newsletter, entrevistas e afins rolando pelo mundo afora (até em inglês). Se quiser ver mais disso, é só me seguir no Twitter e no Instagram.

 

A escrita não parou e as reflexões também não. Se tem algo que eu tenho feito nesse ano e meio de isolamento social, mortes e desgraças mil é refletir. Até para escolher quando vou criar algo pra pensar a realidade ou para escapar dela; de acordo com minhas necessidades. Hoje, minhas reflexões me disseram: “Isso daí você tem que escrever.” Então, me acompanhem nesse exercício mental sobre autoimagem, cobranças e amor, explicando minha header do Twitter.



A Criminal, a Whore, an Idiot and a Liar.

 

Bendito o dia no qual eu botei o primeiro episódio de Scandal para rodar (Rodar? Gente, que cringe!). Para quem não conhece, Scandal é mais uma as séries de TV de Shonda Rhimes (Greys Anatomy, How to Get Away With Murder) e nela acompanhamos Olivia Pope (interpretada por Kerry Washington), uma autoproclamada “fixer”. Olivia é uma resolvedora de problemas e faxineira de imagens que salva a pele de políticos e quaisquer pessoas influentes que a contratem para lidar com coisas que podem destruir suas carreiras; e obviamente, ela é a melhor naquilo que faz.

 

Me deem uma mulher forte com frases de efeito e guarda-roupa maneiro que eu já estou conquistado, mas o motivo para eu começar esse texto explicando quem é Olivia Pope, é porque ela me fez perceber algo muito importante sobre mim mesmo. Olívia é uma personagem complexa e que tem suas escolhas sempre transitando por tons de cinza. Qualquer pessoa que a ame está disposta a caminhar “por sobre um penhasco” por ela e aqueles que a odeiam estão dispostos a leilões bilionários por sua cabeça. Embora tenha um código de conduta claro e estrito, Olivia está longe de ser uma mocinha, ou simples heroína.

 

"Está resolvido."


No episódio 11 da 2ª temporada, Olivia entra em uma discussão com um personagem e, dando nome ao episódio, o acusa de estar a chamando de “a criminal, a whore, an idiot and a liar”, em tradução livre: uma criminosa, uma vadia, uma idiota e uma mentirosa. A verdade? Embora tenha usado seu discurso para escapar da situação, Olivia é todas essas coisas. A minha surpresa? É que naquele momento percebi que eu me identificava cada vez mais com ela pois, guardadas as devidas proporções, eu sentia que era o mesmo. Tanto que o nome desse episódio é a header do meu twitter pessoal até hoje e sempre um status ocasional nas redes.

 

Uma protagonista que resolve problemas e salva pessoas costuma ser alguém fácil com quem se conectar, mas ao assistir Scandal eu me vi nas imperfeições de Olivia e isso é algo que vai além. Se identificar com o pior de um personagem transita entre o libertador e o assustador. Há um alívio por ser ficção, mas também tem aquela vozinha te dizendo que parte sua queria poder fazer algumas coisas terríveis na vida real. Inclusive, criar personagens de RPG moralmente dúbios virou minha diversão nos últimos anos. Pra que ser Leal e Bom se posso ser Neutro Puro?


 


Ao mesmo tempo que salvava o mundo, Olivia tomava atitudes questionáveis para se sentir segura e no controle. Até porque, se ela não estivesse no controle, tudo o que poderia vir disso seria caos e destruição (Ouçam CRTL da Sza no spotify). Em nome desse poder, a personagem perdeu relações, a liberdade e até parte de sua sanidade. Tudo isso sem sequer se permitir pedir ajuda, pois se ela não era capaz de consertar algo, quem seria? Há um custo pessoal grande para aqueles que se dispõem a serem os “consertadores” das vidas a sua volta e nem sempre queremos que esses custos sejam vistos. Ninguém bom quer fazer com que alguém se sinta culpado por ser ajudado. "Claro que posso fazer. Está resolvido, problema nenhum, conte comigo". Mas até aí, por que querer ser tão bom e se dispor a se sacrificar tanto?

 

Sendo preto e LGBT eu passei minha vida toda ouvindo e tendo a certeza de que eu sempre teria de ser maior, melhor, mais inteligente, mais forte e trabalhar o dobro para alcançar a metade daqueles que vieram ao mundo com mais privilégios que eu. Pode parecer muita pressão, mas quem vive isso sabe exatamente do que eu estou falando. Ser excelente era, em parte, questão de sobrevivência e em parte uma compensação por aquilo em mim que eu considerava (ainda que inconscientemente) falho. Pedaços meus que ninguém amaria se soubessem que existiam. Ser mais prestativo, mais generoso, mais bonito e mais culto, era minha forma de tentar garantir que eu teria algum amor e reconhecimento, já que obviamente, eu não era digno de nada disso sendo só eu.

 

"Por que eu te amo exatamente como você é
Espero que voê nunca descubra quem eu realmente sou
Porque você nunca me amaria" - SZA


O problema é que quando há tanto esforço para fazer o certo, nós acabamos por nos desumanizar. Não deixamos espaço para nossas falhas e defeitos e não nos reconhecemos neles, tentandos escondê-los dentro de caixas e debaixo de pisos falsos em nossa mente. Clarice Lispector disse: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”. Winnicot nos lembra que espontaneidade e autenticidade são sinais de uma boa saúde mental. Esconder quem se é não contempla as falas nem da escritora, nem do psicólogo e bem... eu sou os dois.

 

Em psicologia falamos sobre o conceito de integração (e aqui serei bem vago), como um processo psíquico onde unimos aquilo que antes tratávamos como objetos separados. Sabe quando seus pais eram super-heróis e depois chatos de galocha e aí, em algum ponto, você os percebe como seres humanos, com erros e acertos? Nem perfeitos, nem necessariamente monstruosos? É isso. Esse processo é o que nos tira de uma infantilidade emocional onde tudo é absolutamente mal ou absolutamente bom e nos coloca no papel de seres capazes de compreender e refletir sobre as nuances que existem no mundo e em nós mesmos. É apenas através da integração que amamos de verdade, pois nosso amor deixa de ser por uma figura idealizada e passa a ser por uma figura mais próxima do concreto.

 

Eu passei muito anos da minha vida sem me reconhecer quando se tratava de questões muito humanas. Vulnerabilidade, impotência, dor, tristeza, carência, inveja, dentre tantas outras coisas, me causavam vergonha e desprezo por mim mesmo. Me neguei a uma multidão de sentimentos da experiência humana em uma busca por ser bom, ou, o melhor possível, temendo que ser menos que perfeito fosse me fadar a ficar sozinho. Em meus períodos lidando com ansiedade e depressão eu me via como outra pessoa, irreconhecível, e foi doloroso, mas também engrandecedor quando pude acolher a mim mesmo e reconhecer que tudo aquilo também era eu, também era meu, mas não era um resumo de mim. Eu era tudo aquilo e muito mais.

 


Olivia Pope, foi uma das figuras a me ajudar a reconhecer e integrar tudo o que eu tinha de ruim e descobrir como me amar. Não simplesmente cedendo ao que tenho de pior, mas reconhecendo aquilo como tão meu e tão eu, quanto tudo que tenho de bom. E ao me amar, passei a me abrir para ser amado de forma honesta. Despindo aos poucos a imagem perfeita e invulnerável que tantas pessoas tinham sobre mim. Alguns partiram, outros permaneceram e novos chegaram. Uma criminosa, uma vadia, uma idiota e uma mentirosa, mas também uma guerreira corajosa, uma amiga leal, uma líder generosa e um gênio. Tanto Olivia, quanto eu.

 

Ser humano é a coisa mais dolorosa, complexa e difícil deste mundo. Que possamos ser tão bem quanto pudermos. Que possamos ter ajuda quando precisarmos. Que possamos amar e ser amados genuinamente e por pessoas capazes de reconhecer tudo que temos em nós. E que possamos nos reconhecer, melhorar, e fazer o melhor que podemos com tudo aquilo que temos. Como cantou Audioslave: “ser você mesmo é tudo o que você pode fazer”.

 

 

PS: Apoiem a antologia FLAR no Catarse, por favoooooor!!!!

 

- Miguel

Comentários

  1. É muito difícil se permitir ver a própria sombra, mas só é possível amar verdadeiramente depois disso. Assustador e libertador como disse no texto. Estaremos sempre nos surpreendendo conosco e com o outro, mas o fato é que ninguém é perfeito, ninguém é totalmente mal ou totalmente bom. Você se vê realmente?

    ResponderExcluir
  2. Esse texto me fez pensar a primeira vez que te vi frágil e vulnerável, foi completamente assustador perceber que você era humano e não uma divindade como sempre se apresentava. Mas acho que naquele momento passei a te amar ainda mais.

    ResponderExcluir

Postar um comentário