Vítima (im)Perfeita

Uma versão da pintura clássica Susana e os Anciões, de Pompeo Batoni. Uma jovem branca, esta sentada com os pés em uma fonte, se cobrindo com um tecido azul enquanto dois homens idosos se aproximam ameaçadoramente e um deles tenta arrancar um dos panos que a cobre.
 

Eu não sou uma vítima perfeita.

Alguns podem dizer que isso nem mesmo existe, mas a verdade é que todos a imaginam. Uma vítima acima de qualquer suspeita, que não abra espaço para dúvidas, que disse não várias vezes, bem alto. Que gritou, correu, tentou lutar contra seu agressor com tudo o que tinha até ser totalmente subjugada. Uma vítima que implorou para ser deixada em paz e que clamou por ajuda de todos à sua volta.


Eu não sou esse tipo de vítima. A começar por não ter sofrido uma violência física. Por ser um homem, não costumo temer pela integridade do meu corpo. A tenho como garantida, assegurada pelo meu próprio status social e pela minha força. Não tive medo pelo meu corpo, mas tive medo pelo meu trabalho, pelo esforço colocado em algo que tinha um pedaço da minha alma e deveria ser a realização memorável. Temi pela minha reputação, pelas oportunidades que me seriam retiradas, pelo fracasso que seria associado a mim se eu desistisse por “uma bobagem”.


Quando me queixei, a pessoa responsável pela minha dor disse que “nem era nada demais”. Quando me abri, ouvi piadas bem-intencionadas sobre como eu deveria ter dado o que queriam de mim. Eu sou a vítima de uma violência psicológica e emocional tão sutil que só entendi que a vivi depois de me afastar. Que minimizei por diversas vezes o ocorrido e só o enxerguei como o que realmente era ao pensar que, se alguma amiga relatasse algo similar, eu a diria que aquilo tinha sido um abuso.


Sou a vítima que deixou que certas brincadeiras fossem feitas porque éramos amigos. A vítima que riu de piadas que não achava engraçadas para evitar que isso se tornasse uma briga. A vítima que falou sim para coisas que não queria por exaustão diante da insistência. A vítima que disse “eu te amo”, primeiramente de um lugar de afeição genuína, depois por me sentir na obrigação, já que estavam fazendo algo por mim e, no final, como tentativa de proteger minha paz de cobranças e ofensas cada vez maiores.


No começo tudo parecia normal. Interações ocasionais. Pequenos sinais que ignorei, afinal todos temos desafetos que não nos pintam de maneira gentil. Talvez o que dissessem fossem apenas experiências negativas isoladas. Sua descrição no seu pior dia pelos olhos de alguém que te detesta, jamais será boa, mas também não é justa. Hoje vejo casos isolados acumulados em uma pilha de “aconteceu comigo também”.


Vi um padrão se repetir nas histórias de outras pessoas que passaram pelo mesmo que eu: um instante de vulnerabilidade. Para mim foi ficar doente, uma infecção persistente que me deixou de cama por semanas. Para outros pode ter sido a morte de um cônjuge, ou de um animal de estimação, a perda de um emprego, dificuldades familiares que levavam a dificuldades financeiras, uma mudança às pressas. O gatilho variava, mas o resultado era o mesmo, fosse com dinheiro, palavras ou presença, você era acolhido e a relação mudava para uma nova versão de intimidade.


Nessa amizade, coisas íntimas me foram ditas, ainda que não houvesse qualquer sinal de que eu as quisesse ouvir. Fui constante e intencionalmente empurrado a dividir minhas intimidades também. Afinal, como dizer não para alguém que se preocupa tanto comigo e acabou de me ajudar num momento difícil? Mesmo a contragosto e desconfortável com o teor dessas conversas, as aceitei. Outros também aceitavam. Afinal, amigos falam sobre todas as coisas, não é? Também vieram as surpresas, as promessas, os presentes que, logo aprendi, recusar significava semear um conflito que chegaria em breve.


O problema é que eu não era vulnerável o bastante. Sozinho o bastante. Ter amigos e família atrapalhava as tentativas de monopolizar meu afeto e atenção; assim, começavam as brigas e acusações. Eu não estava dando atenção o suficiente, não era um bom amigo. Era egoísta e queria estar sempre certo. Eu buscava a diplomacia. Falsos diálogos nos quais cedia mesmo discordando, afinal, não poderia deixar um desentendimento bobo fazer desmoronar anos de trabalho e esforço.


Para cobrar meu afeto e atenção, éramos amigos. Para estabelecer quem tinha razão nas discussões, era minha superior e assim, recebia os bônus de ambas as posições e o ônus de nenhuma. Aprendi a me fazer mais presente mesmo sem vontade alguma de conversar, do contrário sabia que seria punido e eu não queria mais uma briga, estava exausto delas e de como afetavam minha saúde. Mesmo assim, nunca sabia o que esperar. Um comentário inofensivo poderia gerar uma explosão. Entendi que, para ela, havia conforto no conflito, já que ele era a constante em todas as suas relações.


Um dia, um avanço sexual disfarçado de piada. Não era o primeiro. Eu sabia o roteiro. Rir para disfarçar o desconforto. Ri e respondi, no mesmo tom de brincadeira, que tais itens não pertenciam ao carrinho de nossa amizade.


Resposta errada. Chuva de acusações e ofensas. Para mim, a gota d’água.


Depois de meses da palavra amizade sendo usada, reiterada e constantemente explicitada, admitiu que me desejava desde o início, mesmo tendo mentido que não, e demonstrou revolta de que eu não fizesse o mesmo de volta. Disse que eu devia ter algum problema, que era impossível que eu não tivesse percebido suas intenções. O que descobri depois era que, todos os pequenos momentos que para mim significavam desconfortos, eram narrados para outros como se fossem parte de uma relação consensual. Meu estômago revirou quando me contaram os detalhes do que dizia querer fazer comigo e do que esperava que eu fizesse. Diante do meu não, a história se tornou outra. Uma na qual eu era um manipulador se aproveitando dos sentimentos de alguém que, na realidade, tinha poder sobre mim hierárquica e até financeiramente.


Poder, que utilizou para sabotar meu trabalho, como eu temia que fizesse. Os combinados já não tinham mais valor. As promessas não seriam cumpridas e, enquanto eu era cada vez mais ostracizado, todos ouviriam que era minha culpa. Me senti sozinho, louco, errado, enojado. Então, tudo até ali tinha sido fruto de uma tentativa de dominar meu corpo e minha voz. O interesse pela minha criação, apenas um artifício que usara para tentar me forçar até sua cama.


Fiquei sem ação. Anestesiado. Apenas assistindo o mundo prosseguir e esperando quando eu voltaria a mim. Não demorou tanto assim. Felizmente, não sou sozinho. Amigos e família já eram testemunhas do caminho até ali e, com o tempo, outros se abriram para me ouvir. Logo, mais pessoas contavam experiências similares. Pequenas torturas. Sonhos transformados em pesadelo. Era triste e ultrajante, mas também era uma confirmação de que, pelo menos parte de minha vivência, ecoava em outros que tinham passado pela mesma trilha.


Infelizmente, nada garante que outros indivíduos não sofram o mesmo no futuro. Alguns monstros podem mudar de nome, ainda que sejam a mesma criatura vestindo outra máscara. Permanecem os seguidores cegos, macacos voadores, mentindo e defendendo alguém perverso, usando como defesa o fato de que elas não foram suas vítimas. Talvez nunca sejam, talvez sejam as próximas.vocvo Agora que estou livre, tenho certeza de que as chamadas estão abertas.


Eu achava que era inteligente o bastante, estudado o bastante, confiante o bastante, para não cair na armadilha na qual me vi; esses apoiadores devem pensar o mesmo. Se forem vítimas algum dia, serão tão imperfeitas quanto eu, mas espero que nunca aconteça com elas. Eu não desejaria algo assim para ninguém.

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