Você Será Traído

 Você Será Traído

Um manifesto contra os coitadinhos

Corte da capa do álbum West End Girl da Lily Allen, onde uma pintura dela encara o espectador com um olhar enviesado.
"Quem é essa tal de Madeline aí, papai? Tá cheia de assunto..."


Quando eu escrevo para este blog, costumo fazer um esforço consciente para entrelaçar os temas dos quais quero falar com algo específico da cultura pop; no entanto, esse texto, inicialmente, escapou da fórmula. Ele foi criado como um desabafo diante de algumas coisas sobre as quais conversei com amigos e ficou mais de um mês parado no meu HD, porque senti que faltava algo. Eu estava certo: faltava um elemento pop que foi entregue por ninguém menos do que Lily Allen em seu novo álbum: West End Girl. E embora esse texto seja sobre traição, ele é também (talvez muito mais) sobre autoestima.

Neste meu ensaio contra os coitadinhos, dissertarei sobre tópicos como: Dê chance para um feio e assista ele te trair; pessoas que dizem odiar conflito são as que mais vão te difamar; aprecie quem gosta de você e fuja de quem quer que você goste deles; dentre outros. A lição aqui é: Sempre haverá um morador da Coitadolândia cometendo atrocidades contra você e culpando as próprias inseguranças, mas só se você deixar. E embora eu vá falar um pouco sobre relações românticas, também falarei sobre amizade e comunidade, afinal, de Judas a Jay-Z, traição não é algo exclusivo dos casais… é bem possível que nada seja.

Se você esteve debaixo de uma pedra nos últimos 20 anos, ou tem menos de 15 de idade, vamos começar com contexto. Lily Allen é um dos nomes mais relevantes do pop britânico desde o lançamento de seu primeiro álbum em 2006. Conhecida por sua habilidade em compor letras ácidas e divertidas, talvez você já tenha ouvido os hits mais famosos, como Fuck You (dedicada ao ex-presidente George W. Bush), Smile, LDN ou The Fear. Uma figura controversa e envolta em polêmicas — muitas das quais a própria destrinchou de maneira muito sincera em sua autobiografia “My Thoughts Exactly” —, a fama e carreira de Allen tinham esfriado nos últimos anos, mas nada acende a chama criativa de alguém como um pouco de infidelidade e um descarrilamento emocional.

Em 24 de outubro de 2025, foi lançado West End Girl, um álbum conciso que, em suas 14 faixas, narra com MUITOS detalhes a morte lenta de um casamento atravessado por inveja, competição, traições e muita manipulação. Pra mim é o melhor álbum do ano todo e aconselho que você ouça e vá lendo as traduções pra acompanhar uma fofoca crocante e deliciosa. O novo projeto foi extremamente bem recebido, rendendo entrevistas, memes, discussões nas redes sociais e filas online com mais de 100 mil pessoas tentando comprar ingressos para a turnê. O curioso é que toda essa comoção foi recebida com certa surpresa pelo público geral, mas ninguém ficou mais surpreendida com a recepção de seu trabalho do que a própria Lily Allen, um reflexo da erosão que um relacionamento doente causou em sua autoestima.

Seja por influencers tentando vender porcarias desnecessárias (e ocasionalmente nocivas), pela indústria das cirurgias plásticas buscando manter seus records de faturamento, ou por livros de autoajuda com dicas inventadas à base de Ayahuasca e desonestidade intelectual, autoestima talvez seja um dos conceitos que mais sofrem com uma propagação equivocada de seu significado. Sempre posta como algo que só depende de você, a tal da autoestima parece ser constantemente resumida a se sentir confortável com a própria aparência, não se afetar pelas opiniões dos outros e ser confiante ao se relacionar. É sutil e pode soar como bobagem, mas essas coisas que acabei de citar são mais consequências de uma boa autoestima.

 Definida como: “A qualidade de um indivíduo de avaliar a si e enxergar valor em sua própria pessoa como é”, autoestima inclui autoavaliação e exige a habilidade de olhar e enxergar a si próprio com clareza. Não é a confiança inabalável da arrogância, nem se resume à segurança que se obtém por meio das muletas que se sustentam na validação externa; quando dinheiro, cargos altos, formações, grifes e endereços nos emprestam seu prestígio, sem serem verdadeiramente capazes de alterar aquilo do que somos feitos. Mesmo sendo rica e famosa, Lily parecia ter esquecido quem era e o que era capaz de fazer nesses últimos anos. Por meio de uma obra honesta e vulnerável, o mundo a ajudou a se lembrar.

E é aqui que vou começar com as verdades desagradáveis. Eu tenho uma ótima autoestima e sou uma pessoa confiante diante do que conheço. Ao longo da vida, conheci muita gente que não se vê com olhos justos e, em alguns casos, isso era digno de pena. Hoje tenho bem menos pena e muito mais desconfiança. Meu círculo de amigos é, em sua grande maioria, formado por pessoas 30+ e isso me faz sentir que algumas questões já passaram do prazo de validade para serem resolvidas ou, pelo menos, começarem a ser trabalhadas.


Pintura clássica retratando os Idos de Março, quando Cesar foi traído por Brutus
"Os Idos de Março. Até tu, Brutus?"


Embora possam tentar fazer parecer que uma autoestima ruim seja algo que só faça mal ao dono da mesma, isso não é bem verdade. Alguém que não vê valor em si mesmo acaba sendo suscetível a dinâmicas que ferem todos os envolvidos. Conviver com um cidadão da Coitadolândia pode ser exaustivo por diversos motivos. Seja por causa da constante e custosa busca por validação do mesmo, os ciúmes, a dificuldade em correr riscos para avançar, a passividade diante de situações degradantes ou a inabilidade de passar adiante uma maneira saudável de olhar para si àqueles que dependem dele para aprender isso.

Quando eu digo que um feio vai te trair, eu tô meio que brincando. Não é sobre aparência, é sobre como essa pessoa se vê; e te garanto que, se ela se enxerga como um coitado, não vai demorar pra que o verdadeiro coitado da história seja você. Se seu presente de Deus não se acha atraente e não se acostumou com a ideia de receber atenção e ser desejado, toda vez que isso acontecer, será uma tentação. A sensação de poder que vem atrelada a ser o objeto de desejo de alguém pode ser viciante para uma pessoa que nunca sabe quando isso vai acontecer de novo. Se você, como eu, tá no time dos Gostosos Desde Novos, provavelmente receber elogios e ter alguém querendo seu corpo é legal, mas não é algo que vira seu mundo de cabeça pra baixo. Você aprendeu a dar o valor que essa atenção tem e a verdade é que não é muito.

Eu já tive gente dizendo que se apaixonou por mim por trabalhar no mesmo ambiente, mas a pessoa em questão não sabia meu nome completo, meus gostos ou qualquer opinião minha sobre algo importante. Ela não estava apaixonada por mim, e sim pelo que ela inventou de mim, usando como base meu corpo extremamente saboroso. Pra quem não tem nada, metade é o dobro, então atenção fetichizada pode ser melhor do que atenção nenhuma, mas eu quero sempre mais. Então, imagina seu Jurandir, ignorado e escorraçado até criar uma personalidade que possa compensar os atributos faltantes. Você vai lá e faz a caridade; outra pessoa vê de fora e imagina que, se você deu uma chance, então ele deve ter algo de especial, e daí temos o Pete Davidson pegando todas as mulheres de Hollywood… ou Lily Allen sendo traída por um senhor infectado pelo vírus da beleza, só que assintomático.

E por falar em personalidades criadas para compensar coisas... Hilarie Burton (a Peyton Sawyer de One Tree Hill) já disse uma vez no podcast Drama Queens que o detector de cilada dela foi melhorando com a idade e que uma das coisas que ela aprendeu a perceber foi a diferença entre pessoas que gostam de você e pessoas que querem que você goste delas. O segundo tipo é muito perigoso. Não sejamos hipócritas ou ingênuos: todo mundo quer ser amado. Somos seres sociais e saber que as pessoas gostam de nós é importante para nossa saúde mental, sobrevivência e segurança. O problema é que, ser alguém que as pessoas gostem, pode se tornar uma prioridade carregada de um aspecto perverso em alguns indivíduos. Nisso surgem pessoas que usarão máscaras de amabilidade e sacrificarão valores e aliados para alcançar status de importância diante de seus escolhidos. Quando não se enxerga valor em si mesmo, a validação do outro se torna a única fonte de alento.

Esse talvez seja o tipo mais nocivo de coitado, porque ele não trai apenas indivíduos, mas comunidades inteiras. Quem não conhece uma mulher que diz só ter amizades com homens, porque outras mulheres são frescas e dramáticas? Ou o gay que faz questão de ser discreto, detesta Drag Queens e não acredita nesse mimimi de homofobia porque só tem amigos heteros e eles o tratam “como se fosse gente normal”, já que ele se dá ao respeito? Também temos o amigo negro que não vê problema em piadas racistas e até faz algumas, afinal, ele não tem frescura e é só brincadeira. Certeza que uma ou outra pessoa te veio em mente e alguns exemplos diferentes também passaram pela sua cabeça.

Caras negros que sempre iam escolher brancos, seja para dedicar amizade, afeto ou oportunidades. Caras gays que só se interessavam por aqueles que se apresentavam como heteros, reafirmando não só sua homofobia internalizada, mas também sua misoginia, ao fazer questão de se envolverem com caras comprometidos e se orgulhando disso, afinal ser escolhido por aquele homem o fazia superior às mulheres e fazer parte no jogo onde ela era enganada, satisfazia um ressentimento interno... as possibilidades são infinitas

É uma bagunça. Já lidei com todos esses tipos e mais alguns, e a verdade é que levou um bom tempo para eu perceber que a ansiedade que já senti em certos espaços, com pessoas que eu considerava meus pares, era apenas meu corpo dando a certeza de que eu nunca estaria seguro entre eles. O senso de comunidade que eu esperava encontrar era inexistente e totalmente subjugado pela necessidade de ser escolhido por aqueles que eles consideravam o ideal.

Todos esses tipos se odeiam. A parte triste é que esse ódio é mais complexo do que a baixa autoestima que o capitalismo promete resolver com harmonização facial. A internalização da misoginia por parte das mulheres, da LGBTQfobia pelos LGBTQ+ e do racismo e ideais supremacistas por pessoas racializadas destrói a ideia de valor do indivíduo não só sobre si, como sobre seus pares e o transforma em um aliado daqueles que preferiam que ele nem existisse. Eu adoraria dizer que essas pessoas precisam que estendamos a mão para elas e as ajudemos a sair desse buraco, mas a verdade é que todas elas vão te trair, porque ter a aprovação de um homem, hétero, branco é a única coisa que as faz se sentirem humanas. Minha versão de 21 anos tentaria ajudar; a 30+ tá focada em ajudar quem corre do meu lado e eu sei que me protegeria mesmo se tivesse de bater de frente com pessoas que admiram.

Claro, há aqueles que não batem de frente com ninguém. Uma ex-amiga costumava reclamar muito de uma pessoa do círculo íntimo dela. Nos poucos momentos em que estive com a pessoa, ela me tratou bem e, mesmo fora da presença da tal ex-amiga, só falava bem dela e demonstrava gratidão e apreço profundos pela amizade que tinham. Eu sugeria que a ex-amiga tentasse ter uma conversa franca e dialogar sobre seus incômodos, afinal, estavam sempre juntas; me parecia insustentável ficar se aborrecendo e fingindo que tudo estava bem. Não sei que fim levaram. A ex-amiga fez coisas que me aborreceram, expliquei quais foram e me afastei pra nunca mais voltar, mas duvido que tenha acontecido uma conversa entre elas.


Fotografia de uma estátua de mármore retratando o beijo de Judas
"Como diria Gaga, ou a Íris em Laços de Família: JUDAS!"


Uma vez um “amigo” se ofendeu quando eu disse que pessoas acostumadas a fugir de conflito, constantemente reclamavam do que estavam fugindo para os outros sem buscar uma resolução verdadeira para a situação e roubando a oportunidade de melhora do outro. Que fique claro, não estou falando de situações onde relatamos algo de ruim que nos fizeram em uma situação finalizada ou onde buscamos orientação sobre como lidar, isso é diferente. Falo mais sobre aquele parente que diz pra família toda que você é grosseiro, mas nunca fala na sua cara que você fez uma grosseria e como isso o afetou. Se dissesse, você poderia se desculpar, se policiar para não repetir, ou até dobrar a aposta e dizer que era isso mesmo.

O diálogo aberto permite que os envolvidos escolham qual rumo a relação toma. A fofoca, destrói a reputação e os laços de um lado, e ainda terceiriza a responsabilização de punição para as mãos de quem a ouviu, mantendo o coitadinho escondido sob a faixada do “eu não fiz nada, só desabafei”. Eu acredito em tomar decisões conscientes sobre o que queremos, seja reparação, rompimento, diálogo ou até uma boa briga se for o caso. Alguém que não discute o problema com a fonte dele pode querer várias coisas e nenhuma delas me soa boa. O único desconto possível é se tratando de chefe/colega de trabalho arrombado ou de caloteiros, onde o desabafo é totalmente válido.

Quanto ao “amigo”, não somos mais próximos e esse foi um de nossos últimos diálogos. Vou apenas dizer que alguém o confrontou diretamente sobre muitas coisas e ele não teve chance de fugir, porque escolheram deixá-lo para trás.


Imagem extraída do videoclipe de Antihero de Taylor Swift. Em um quadro negro se lê a frase "Everyone Will Betray You", (todos te trairão, em tradução livre).
"Todos Te Trairão." Meu demônio da paralisia do sono é esse aqui.


E, ainda assim, você será traído. Ninguém é bonito, inteligente, confiante, rico ou poderoso o suficiente para que isso o torne imune às escolhas do outro. O que uma boa autoestima pode te entregar é a segurança dos pássaros: a certeza de que seu pouso é seguro, não pela rigidez da árvore escolhida, mas pela sua capacidade de voar caso ela falhe. Seja com amigos, romances, parceiros ou família, você não precisa insistir e se prender a algo que não funciona ou te faz mal, com medo de que não haja coisas melhores lá fora, porque, mesmo que não haja, você carrega o seu valor dentro de si.

Talvez você esteja sentindo uma leve revolta e se perguntando: “Tá, se você é o fodão, então como é que eu melhoro minha autoestima?”, e minha resposta é: não sei. Posso te dizer algumas coisas que ajudam, mas a verdade é que eu sei exatamente de onde a minha autoestima nasceu e foi da maneira como minha mãe me criou, misturada com os traumas de ter que ser o filho mais velho resolvedor de problemas diante de um pai imaturo e abusivo. Quando você sobrevive a certas coisas, os problemas ou opiniões dos outros parecem bem pequenos.

Se você não tem uma máquina do tempo, então eu sugiro: Terapia, pra entender quem tirou sua capacidade de ver valor em si próprio e, principalmente: Comunidade. Se cercar de pessoas com dores e valores similares àqueles que carregamos é imprescindível para que enxerguemos melhor a nós mesmos. Um espaço seguro para partilhar vulnerabilidades, nos dá a dádiva da perspectiva e com ela saberemos que mesmo os melhores e mais admiráveis de nós também tem medos, inseguranças e desconfortos. Acompanhar criadores com honestidade artística também pode ser um bom caminho. Talvez você seja muito mais parecido com uma popstar britânica de 40 anos do que pensa. Se já levou um chifre, você tá no mesmo time que Britney, Shakira, Beyoncé, Alanis, Sabrina Carpenter e, obviamente, Lily Allen.

Por fim, também sugiro uma dose de delírio. Se imagine mais importante do que é, romantize sua vida, finja que você é o protagonista poderoso de uma série legal. Se o que acreditamos sobre nós e o mundo à nossa volta nunca é um retrato preciso da realidade, por que não escolher uma imprecisão que seja mais gentil e generosa? Parafraseando a psicanalista Ana Suy: “Não suportamos nada nessa vida sem alguma idealização, nem a nós mesmos”. Então, quando pensar em amor-próprio, vale a regra do almoço de domingo: melhor sobrar do que faltar.

Comentários

  1. Primeiro de tudo - parabéns pelo texto! Pelo título e pelo seu fluxo de escrita, imaginei que falaríamos sobre referências de cultura pop e valores pessoais, mas quando você puxou a carta sobre comunidade, eu agradeci de estar sentada pra poder absorver melhor o que veio em seguida.

    Segundo, gostaria, se possível, se fazer meu complemento ao que pode ser feito para melhorar nossa autoestima, ainda falando sobre o tema de comunidade. Acredito (e vivo na prática) que, quando entendemos a nossa responsabilidade como membros pertencentes e ativos em grupos (seja família, amigos, parceiros de clube do livro, etc), precisamos lidar com a responsabilidade de nos cuidar pelo outro.
    Não adianta eu desejar coisas boas para meus amigos, estar lá pela minha esposa, contribuir para a limpeza do meu ambiente de trabalho se eu não beber um copo de água, ficar 17 horas usando telas de celular sem motivo, não tomar minha cota de vitamina D do dia ou não me exercitar. Claro, tem 999 questões que podemos abrir sobre isso, incluindo falta de acesso e tempo a muitas coisas, mas dentro do que é possível para a realidade de cada um, é vital que tomemos a nossa parcela de responsabilidade dentro dos grupos em que estamos inseridos. Isso reverbera de forma positiva para nossas relações, estabelece bons exemplos e, sinceramente?, ajuda a separar o joio do trigo.
    Como diria Dracul (2025), "semelhante atrai semelhante".

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